Não pretendo plagiar o artigo do Prof. Dr. Manuel Sérgio que tinha o título de “O preparador físico. O que é isso? Eu não sei”, publicada na revista Foot em 1986… tinha eu 7 anos.
Vinte e três anos depois o tema é ainda considerado inovador, no entanto, a meu ver, ainda não tem a projecção devida nem a aplicação correcta.
O propósito deste texto é levantar de novo a discussão em torno do planeamento e carregar baterias de modo a que exista evolução.
Existe o treino tradicional, analítico; existe o treino integrado, que é o treino com bola, não muito diferente do anterior, e existe a Periodização Táctica com o qual me identifico mais.
As primeiras metodologias, sobre o paradigma de Descartes, dividem o pensamento e o ser, a alma e o corpo, e vêem o homem como uma máquina. É também baseado nesta influência cartesiana que nasce a Educação Física.
O paradigma da complexidade surge com Kant, que assume o Homem como um todo, surgindo a Ciência da Motricidade Humana por Manuel Sérgio, defendida entre outros por António Damásio, brilhante neurocirurgião, que publicou “O erro de Descarte” e aplicada, brilhantemente, pelo treinador Mourinho. É nesta vaga metodológica que se aplica a Periodização Táctica.
Esta "consiste em distribuir no tempo a aquisição de comportamentos tácticos (princípios e sub-princípios) inerentes a uma forma de jogar (específica), com o subjacente arrastamento da dimensão técnica, física e mental. Sobrepõe o colectivo ao individual." (Vítor Frade, 2003). É a operacionalização de um jogar através do desenvolvimento contínuo do Modelo de Jogo.
Eu, na realidade, não sei como preparar uma equipa meramente no seu aspecto físico, descontextualizada dos conceitos de totalidade, complexidade, especificidade e intencionalidade, integrados na metodologia da Periodização Táctica. Mais do que partir o todo (treino físico, técnico, táctico ou psicológico), é assumir que o todo é mais do que a soma das partes.
Sem dúvida, a meu ver, o mais importante é o Modelo de Jogo. Um conjunto de princípios e sub-princípios organizativos das fases de jogo, que dêem organização e direccionalidade à equipa. O objectivo é criar uma forma de jogar desde o primeiro dia de treino.
Se tivermos de ensinar um cozinheiro a cozinhar, a primeira coisa a fazer é colocá-lo a correr à volta do fogão para que fique em forma? Penso que não. Não será crucial familiarizá-lo com os alimentos e condimentos e da forma como interagem?
O futebol é táctica, vive cada vez mais de estratégias. A função de um jogador depende claramente das referências colectivas, referências essas que são determinadas pelo treinador no seu modelo de jogo, que vai condicionar claramente o seu treino. Os seus exercícios e intervenções no treino devem ter como objectivo seguir o modelo que serve como referência.
A criação de um modelo é determinada por factores fundamentais, como o próprio clube, os seus objectivos e especialmente as características dos jogadores.
A juntar a esta metodologia, devemos organizar o treino interagindo no microciclo semanal, os princípios da alternância horizontal, da progressão complexa e das propensões.
O princípio da alternância horizontal em especificidade é o que nos vai permitir conjugar as contracções musculares na sua tensão, duração e velocidade. Neste sentido, se durante os 3 ou 4 treinos semanais realizarmos unicamente 10x10, as solicitações serão as mesmas, o que provocará fadiga.
O princípio da progressão complexa depende do contexto e da hierarquização dos princípios. É provavelmente o aspecto mais importante no início da pré-época. Como vamos iniciar o treino do nosso jogar? As competências a adquirir pelos jogadores dependem de um contexto, devem ser metodologicamente planeadas, daí a importância deste princípio. Se estamos numa equipa que está em primeiro lugar e é candidata à subida, possivelmente a lógica é trabalhar o ataque em primeiro lugar.
Se estamos numa situação diferente, com uma equipa que luta pela manutenção, mas que está em último lugar, se calhar penso que será importante preocuparmo-nos em desenvolver mais os princípios defensivos.
Relativamente ao princípio das propensões, focaliza-se na criação de contextos propícios a determinadas aquisições. Está intimamente ligado ao sentido. Imaginemos que crio uma situação de exercício de posse de bola.
Os jogadores naturalmente vão procurar manter a posse da bola, no entanto, tem de existir grande especificidade naquilo que pretendo desenvolver.
Se pretender melhorar a pressão defensiva, por um lado tenho de especificar o modo como ela deve ser elaborada e em que condições, desenvolvendo o modo organizativo. Por outro lado, devo organizar o exercício para que os comportamentos tácticos que pretendo desenvolver surjam. Refiro-me aos condicionalismos do exercício, seja em espaço amplo, ou em espaço reduzido, se coloco apenas uma equipa em posse, se limito o número de toques possíveis, entre outros.
Em suma, na realidade não acredito em preparações físicas. Quem treina tão pouco por semana só pode e só consegue preocupar-se com os aspectos estratégicos da equipa. Isso só é possível com a criação de um Modelo de Jogo adaptado aos jogadores, onde estejam definidas as suas interacções e competências.
Mourinho uma vez disse:
“(...) Desculpem-me os que são crentes, mas para nós não passam de vocabulário desactualizado.
Refiro-me a conceitos como treino físico, preparação física, pastas de preparação física, entre outros. Não critico quem pensa desta forma. Critico quem compara o nosso processo com outros processos (…). Começo por dizer o que tenho dito noutras alturas: não tenho preparador físico, pelo que não posso ter pastas de preparação física, pois como líder responsável pelo processo não teria pasta para lhe dar! Tenho sim colaboradores no processo de treino e jogo, com funções muito específicas, de acordo com as necessidades de gestão de uma época longa. Tudo se relaciona com a forma como treinamos. Não temos espaço para o treino físico, isto é, não temos espaço para os tradicionais treinos de resistência, força ou velocidade. É tudo uma questão de comportamentos! (...)”
“(...) Sei que é uma questão difícil de desmontar sob o ponto de vista cultural. Além do mais existem pessoas, por direito próprio, a pensar de forma radicalmente oposta. Mesmo para os que dizem treinar com situações de jogos reduzidos, porque mesmo esses vivem agarrados e obcecados com tempos de exercitação, de repouso, repetições, etc. Todas estas questões são para nós “acessórias”. O que é crucial é mesmo o conteúdo de princípios de jogo inerentes a cada exercício e a relação interactiva que estabelecemos com o mesmo. O que é mesmo fundamental é entender que aquilo que procuramos é a qualidade de trabalho e não a quantidade, treinar para jogar melhor.”
O Modelo é a assinatura de um treinador.
Esta é a principal perspectiva de avaliação do trabalho do treinador. O jogar, que é no sentido lato, o início do nosso trabalho, é a nossa intencionalidade, diria mais, a nossa identidade.
Sem a Periodização Táctica a preparação física não teria sentido. Sem a preparação física ou o treino integrado, a Periodização Táctica não teria história. O passado está no presente. Sem ele o presente não teria nenhum sentido.
A sorte, o imprevisto, o árbitro, a bola que não entrou, que bateu na trave ou no poste, podem justificar o ganhar e o perder, mas na realidade não justificam todas as derrotas, nem todas as vitórias.